“A esta altura – meados da década de 1990 – a plataforma para o achatamento do mundo já começa a emergir. Primeiro, a queda dos muros, a abertura das janelas (o nascimento do Windows), a digitalização do conteúdo e a difusão do navegador da Internet geraram um grau inaudito de conexão irrestrita entre as pessoas. Depois, os softwares de fluxo de trabalho geraram um grau inaudito de conexão irrestrita entre aplicativos, permitindo aos usuários manipularem todo o seu conteúdo digitalizado, por meio dos computadores e da Internet.
“Juntando esse grau inédito de comunicação interpessoal com todos esses programas de fluxo de trabalho entre aplicativos baseados na web, o resultado é uma plataforma global inteiramente nova para as mais variadas formas de colaboração” (O mundo é plano: uma breve história do século XXI. Objetiva, Rio de Janeiro, 2005, p. 97-98).
O acesso à Internet passou a ser considerado mais um direito fundamental da pessoa humana, destacou o professor argentino Orlando Pulvirenti. A sua plena efetividade exige elaboração legislativa e ações concretas por parte dos Estados. Devem investir em infraestrutura, para que todos os habitantes do seu território tenham pleno acesso à Web (Derechos humanos e internet, Errepar, Buenos Aires, 2013, p. 90-91).
A par dessa configuração jurídica e dos benefícios decorrentes do surgimento da rede mundial de computadores, o sociólogo francês Gérard Leclerc indagou: “Quem ‘governa’ a rede? Há possibilidade dos estados ou grupos controlarem, ‘censurarem’ uma circulação tão gigantesca?” (A sociedade de comunicação: uma abordagem sociológica e crítica, Instituto Piaget, Lisboa, 2000, p. 7).
Ainda carentes de adequada regulamentação em todo o planeta, infelizmente as redes de comunicação social pela Internet são assoladas por avalanches de notícias falsas (fake news) e manifestações de ódio. São veiculadas por adeptos extremistas de diferentes grupos ideológicos.
Explana Leandro Karnal:
“O mundo deve concordar conosco. Quando não concorda, está errado. Somos catequistas porque somos infantis. A democracia é boa sempre que consagra meu candidato e minha visão de mundo. A democracia é ruim, deformada ou manipulada, quando diz o contrário” (O ódio nosso de cada dia, LeYa, Rio de Janeiro, 2017, p. 12-13).
No jornalismo - como em todos os demais campos de atividade que envolvam manifestações de pensamento - deve prevalecer a plena liberdade de expressão.
É o que assegura, por exemplo, a Constituição brasileira de 1988:
“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
“§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”.
E são estas as ressalvas do artigo 5º: “IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; (...)”.
Atribui-se ao filósofo francês Voltaire bela frase criada por sua biógrafa britânica, Evelyn Beatrice Hall: “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”.
Lamentavelmente, no Brasil e mundo afora, a apenas um segmento ideológico é atribuída liberdade de expressão em plenitude. Isso pode ser verificado no recente e conhecido episódio da exclusão do presidente norte-americano das redes sociais que utilizou, com êxito, durante o seu mandato - Twitter, Facebook e Instagram.
Comentou o respeitado jornalista J. R. Guzzo:
“Segundo disseram os dirigentes, as manifestações do presidente violam a linha de conduta das redes; sua política, afirmam, não permite o ‘incentivo à violência’, e no seu julgamento é justamente isso o que Trump tem feito. Não há possibilidade de apelação desta sentença. Trump foi desligado da tomada e não pode fazer nada a respeito; vai ter de encontrar uma outra rede para se comunicar. (...)
“A chave da questão toda está nas escolhas feitas pelas redes sobre que tipo de mensagens elas aceitam ou não aceitam – algo que definitivamente está no reino da política. Twitter, Facebook ou Instagram tem aceitado, sem qualquer restrição, mensagens de violência aberta expedidas por movimentos terroristas disfarçados em ‘causa social’, ou propaganda de ditaduras como as do Irã ou Venezuela – alegando, aí, que não lhes cabe interferir em questões ‘políticas’ ou de ‘opinião’. É óbvio que não cola.
“Não apareceram até agora ideias realmente coerentes, práticas e eficazes para regular legalmente este novo mundo. Enquanto isso, o melhor – ou o possível – é deixar a questão toda a cargo do público, que dará sua confiança às redes que respeitar, e do avanço da tecnologia, que continua sendo a melhor arma para assegurar a livre concorrência” (As escolhas sobre o que Twitter, Facebook e Instagram aceitam são políticas, Gazeta do Povo, 11.01.2021).
Para Rodrigo Constantino, criou-se o “ódio do bem”:
“Vivemos em tempos de muita tolerância e amor, sem preconceitos. Ao menos é isso que a esquerda prega. Mas essa tolerância toda só vai até a página dois. Quando há do outro lado um conservador, um liberal, um homem, um branco, um judeu, um cristão, um republicano (cruzes!), aí está liberado destilar todo o ódio existente. Afinal, criaturas abomináveis não merecem nosso respeito” (O ódio do bem, revista Isto É, 21.10.2016).
Ao punir somente uma parte do espectro ideológico, as redes mundiais violam também o direito fundamental à igualdade, assim estatuído pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (Organização das Nações Unidas, 1948): “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e diretos” (artigo 1º).
Enfim, condutas censórias dessa natureza confirmam a assertiva de Roger Scruton: após a derrocada dos regimes comunistas, decorrente da derrubada do Muro de Berlim, “o establishment de esquerda (está) de volta ao banco do motorista” (Tolos, fraudes e militantes: pensadores da nova esquerda, Record, Rio de Janeiro, 2018, p. 12).
* Rogério Medeiros Garcia de Lima (Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor universitário; artigo publicado pelo jornal Inconfidência, Belo Horizonte/MG, nº 286, 03.02.2021, p. 19)